bolo Sônia

Estava com a máquina de poesias a todo vapor, quando Clarice pediu que me arriscasse a transformar uma situação aparentemente comum em algo extraordinário. Sequer exitei em pausar a máquina de poesias: o desafio que a escrita me proporciona faz os meus olhos salivarem. Pensei que a máquina de crônicas não existia ou estava muito bem escondida. Nessas idas e vindas no dia vinte e cinco de Abril decidi ligar para minha vó, que sempre foi uma grande fonte de inspiração. Conversa vai, conversa vem, depois de 26 anos me veio a curiosidade de saber como nasceu o bolo Sônia. Por mais que compartilhe a receita com todos que solicitam, ninguém consegue chegar no resultado do bolo original, feito por ela. Então perguntei: 

– Minha vó, quem te deu a receita do bolo Sônia?

– Ninguém, eu criei. – Ela respondeu.

– Como assim você criou? – Questionei. 

– Peguei uma receita e fui incrementando, adicionando ingredientes, mudando a quantidade… recriando até que chegou no bolo Sônia. Você sabe que o bolo Sônia pode ser modificado, né? Você pode trocar o leite de vaca por leite de côco, que por sinal fica maravilhoso, bater o leite junto com a ameixa, colocar passas. Ele é polivalente como a dona. 

Sorri do outro lado do telefone, por lembrar o quanto o bolo Sônia é a personificação da minha avó Sônia. Lembrei da minha antiga receita, uma cópia exata de tantas receitas. 

Continuamos conversando e ela comentou que há pouco meu pai tinha ligado também. Meu pai não é uma pessoa de ligar sem motivos. Questionei por que ele tinha ligado, ela me perguntou:

– Você não ia lembrar né?

– De que minha vó? –  Perguntei. 

– Hoje é meu aniversário. – Ela enfatizou. 

Sorri, sorri muito: espontaneamente tantas memórias surgiram, relembramos das vezes que nos encontrávamos e quando olhávamos para as mãos uma da outra estávamos com a mesma cor de esmalte; das vezes que vestíamos a mesma cor ou estilo de roupa, ela sorrindo falava: “Não é possível”, eu respondia com outro sorriso: “Não é possível mesmo, inacreditável”. Pelas ruas toda orgulhosa me apresenta: “Essa é Stephanie, minha neta, filha do meu mais velho, essa menina é a segunda Sônia, minha xérox.” Eu que sou apenas uma xérox clara da sua autenticidade, força e coragem colorindo a nossa semelhança, encontrando minha individualidade. 

a anfitriã conveniente

Quando li para minha madrinha meu primeiro texto “Anfitriã conveniente” ela me perguntou:

– Quem escreveu esse texto?

Respondi com um sorriso que era mistura de orgulho e vergonha:

– Eu. 

– Menina você é escritora. – Ela afirmou.

– Oxe minha dinda, você é maluca.  – Respondi desejando que a maluca fosse eu. 

Não há como escrever sem estar na arena da vulnerabilidade, o lugar que nos faz sentir nossa humanidade, onde removemos partes de nossas vestes ou até mesmo todas elas diante de uma incógnita plateia. Nós escritores aprendemos a amar a dor, ela nos rende bons textos, a querer nos apaixonar o ano inteiro, recomeçar sempre que o coração desacelera, abrir os olhos com o olhar de quem se ama, viver para sentir e continuar no ofício de colorir com preto, abraçar ou apunhalar sem tocar.

A anfitriã conveniente.

Todos os dias faço uma visita, descobri onde ela vive. O seu endereço é fácil, ela mora perto. Desde então a visito religiosamente todas as manhãs, às vezes passo para dar oi à tarde, em alguns momentos boa noite. Uma coisa é certa. A minha chegada à porta todos os dias. Às vezes me pergunto se minha visita não é inconveniente. Acho que não. Ela não faz questão de se esconder, está sempre no mesmo lugar, não tem cerimônia com horário. Talvez seja flexível, permissiva e receptiva, pois não recebe visitas frequentemente. Triste. Ela é uma boa companhia. Infelizmente não posso te ensinar o caminho, difere para cada indivíduo. Uma dica: ela está perto. Várias chances: você pode buscar todos os dias. Obrigada pela receptividade FELICIDADE.

à medida que escrevo distancio o meu eu para que caiba o nosso

A escrita me faz sentir o que acontece ao meu redor, sensações e sentimentos diante da vida. Os primeiros textos eram reflexo das minhas experiências, estas que me tocaram profundamente ao ponto de externar o dom que sempre viveu em mim, mas por falta de delicadeza não era visto, assim como não se vê o início da primavera. À medida que escrevo distancio o meu eu para que caiba o nosso. A escrita me colocou como telespectadora da minha própria vida para que eu fosse gentil comigo mesma, abraçou por mim pessoas que eu não era capaz de acalentar, ultrapassou barreiras geográficas para que eu pudesse estar presente, foi voz quando me faltou fala, munição para minha defesa. Entre tantas regras da língua portuguesa e literatura  esbarrei com a liberdade, que se apresentou como: escrita criativa.